O melhor lugar do mundo é aqui — e agora?
“O tempo cura todas as feridas.” “O tempo é o melhor remédio.” Quem nunca falou ou ouviu essas sabedorias universais da humanidade? Eu mesma já acalentei pessoas queridas com palavras parecidas, e as disse com convicção e de coração. Mas, quando estou na posição de ouvinte, o conselho me deixa desesperançosa.
Também me deixa muito triste quando alguém me pergunta “E aí, como você tá? Melhorou?” e eu não melhorei, porque nunca vou melhorar completamente. Não é pessimismo, é fato. Mas aí você nunca quer se alongar muito na questão e só responde à pergunta com um “É, tô melhorando…” meio reticente. Perdi as contas de quantas vezes um ordinário “Oi, tudo bem?” quase me fez lacrimejar. Nunca estava tudo bem.
“Crônico” vem do grego “khronikós”, que está no campo semântico de “chrónos”, que, em português, significa “tempo”. Ter uma doença crônica é desafiar a máxima de que “o tempo cura todas as feridas”. Não importa quanto tempo passe, feridas sempre farão parte da linha do tempo de um paciente crônico. Feridas físicas, onipotentes, onipresentes, visíveis ou invisíveis.
Se uma doença crônica é uma doença temporal que faz o paciente ter uma relação conflituosa com o tempo, é desejável que haja uma pacificação dessa relação. No meu caso, passei a usar a música “Aqui e agora”, do Gil, como resgate para momentos de angústia.
O melhor lugar do mundo é aqui e agora
Em certo ponto, porém, essa música parou de ser confortante. Refletir demais sobre o verso “o melhor lugar do mundo é aqui e agora” era um tiro no pé. Nem no melhor lugar do mundo estaria tudo bem. Por causa da minha doença, até o melhor lugar do mundo pode ser o pior lugar do mundo. Mesmo que o meu aqui seja um parque fresco com amigos, risada e quitutes, mesmo que o meu aqui seja uma festa legal esperada por meses, mesmo que o meu aqui seja a minha cama quentinha com lençóis recém-trocados, o meu agora é perpetuamente assombrado, ora pela doença de dentes cravados em mim, ora pelo medo da próxima crise, sempre à espreita.
Viver livre de medo e ansiedade, para a minha realidade, parece utópico e quase ingênuo. Viver começou a ficar assustador. Eu não vou morrer de dermatite atópica, sei disso. Mas é uma doença que me come a mente e o espírito em vida. Tem dias que come só um pouquinho, de colher de sobremesa; alimenta-se de sobras de mim que não me fazem falta. Mas tem dias que come com faca de churrasco, tira tecos que eu acreditava serem intiráveis; devora as vontades, sonhos, alegrias e até minha identidade.
O melhor lugar do mundo é aqui
E agora?
The Good Place (2017) - s02e03
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Eu tenho dermatite atópica crônica grave. Não tem cura, mas tem controle. Dá para viver com conforto quando se tem a concocção perfeita de alimentação, saúde mental, exercício físico, hidratante e remédios. É difícil, mas não pode ser impossível. Simplesmente não pode. Ouço muito de pessoas amadas que sou “muito forte”, mas sinto que simplesmente não tenho outra escolha. Caso contrário, viver é insustentável.
Desde a infância, bato ponto em consultórios de dermatologia. Minha pele deve ter passado pelas mãos de todos os dermatologistas de Mogi das Cruzes e de uma quantia razoável de dermatologistas em São Paulo. Cremes, pomadas, antialérgicos, anti histamínicos, vacina de gotinha para alergia, vitaminas, imunossupressores, imunomoduladores injetáveis, corticóides tópicos, corticoides orais, hidratantes caros, hidratantes baratos, sabonetes líquidos, sabonetes em barra, xampus cheirosos e coloridos, xampus fedorentos e incolores… quanto tempo você tem? Tudo isso entremeado com consultas de outros especialistas (porque vai que): imunologistas, homeopatas, alergologistas, nutricionistas, e muitos mais, tenho certeza, mas isso foi o que minha memória me permitiu lembrar. Minhas queixas, por mais que eu tente minimizá-las, não têm fim, e os diagnósticos se multiplicam com frequência: dermatite seborreica, foliculite, prurigo nodular, alopecia areata, vitiligo, disidrose, e por aí vai.
Minha coceira não cessa, toma o corpo inteiro e, como toda coceira, só piora quando coço e é impossível de não coçar. Eu me coço em lugares públicos e preciso tirar o sapato para me coçar, mesmo sabendo que muita gente vai me julgar e achar nojento. Quando saio com amigas, eu me fecho em banheiros para me coçar, e meço o tempo para que pareça que só estava fazendo xixi. Minhas unhas, por mais curtas que sejam, machucam a minha pele, e essa pele ferida muitas vezes infecciona, e infecção é um outro nível de dor. Quando está frio, por mais que minha pele esteja calma, sempre entro em uma nova crise. Tomar banho é tipo escorregar num escorregador de Gilette e cair numa piscina de álcool, e eu frequentemente saio do chuveiro chorando. Minha família gasta muito dinheiro com farmácia e médico, e, embora ela me ajude incondicionalmente, não consigo não me sentir culpada por não conseguir bancar a minha doença. Planejar qualquer coisa é como caçar um sabonete na banheira do Gugu, porque as tarefas podem escorregar das minhas mãos sem que eu tenha qualquer controle, a depender do meu imprevisível estado físico.
As micro e macroconsequências da dermatite na minha vida são imensuráveis. O que quero dizer é: a dermatite é o fio condutor da minha existência. A sensação de coceira, o esforço para não me coçar e os momentos íntimos de unha e carne são a Inferníssima Trindade que rege meus dias e impede a minha concentração total em até nas menores tarefas. A horripilância da minha doença, correndo atrás de mim como o Jason da serra elétrica, me obriga a fugir. Tento fugir para cenários imaginários, tento ser insuportavelmente positiva, tento sufocar minha realidade com música pop e piada, tento usar roupas bonitas e maquiagem para sentir que ter um corpo pode ser divertido. Nada disso afugenta a realidade. O aqui e o agora me esperam de boca aberta.
Quando assisti ao 1917, que é um filme quase totalmente em plano-sequência sobre a Primeira Guerra Mundial, saí do cinema pensando que, se alguém me perguntasse qual é a sensação de viver com dermatite atópica crônica, eu indicaria a essa pessoa que visse esse filme. Acho que me identifiquei porque, para mim, é um filme sobre trauma, estresse, exaustão física e mental. A cena que mais me marcou (você pode assisti-la aqui), e talvez a que defina com mais exatidão a minha identificação foi uma em que, depois de uma corrida alucinante para fugir de explosões, o protagonista se atira de um penhasco e cai num rio. Ele quase se afoga, mas encontra um tronco e, após alguns minutos, alcança um trecho tranquilo do leito. Pétalas brancas caem suaves ao seu redor, e o barulho da água é meditativo. Está longe de ser o aqui perfeito, mas, naquele agora, há certa paz. O soldado aparenta estar quase relaxado. Eis que, ao tentar sair do rio, se depara com dezenas de corpos, já sem vida, e é obrigado a se agarrar neles e escalá-los para escapar. Já em solo, ele arfa, cai de joelhos, chora. Mas não pode parar por muito tempo: há uma missão em curso que depende apenas dele. É preciso engolir as emoções, ignorar o horror e seguir automaticamente, feito um zumbi.
Sei que parece dramático me enxergar nessa cena, mas a realidade é dramática mesmo. Quando as pessoas têm doenças pontuais, geralmente vão ao médico e repouso é recomendado. Ninguém questiona isso. (Quer dizer, nEsSe mUnDo nEoLiBeRaL, o patrão sempre reclama do funcionário “que falta demais”, mas, obviamente, não deveria.) Uma pessoa doente deve descansar para se recuperar. Mas e quando a doença dura anos e anos e anos? Você descansa a vida inteira? Não. Há momentos que permitem tomar fôlego, mas você acaba virando um transformer de humano com caminhão de lixo, esmagando suas dores num compactador e tocando pro próximo quarteirão, ad infinitum.
1917 (2019)
(esse tanto de número deu pane no sistema)
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Viver em fuga, em modo de guerra, é viver economizando energia, sempre tentando me poupar, sempre priorizando o meu alívio imediato. Isso tem uma consequência grave a longo prazo: a falta de perspectiva. Desde a infância, tenho uma mente dissonante do corpo, e ambições incompatíveis com as minhas limitações físicas. Mas ontem eu tinha 6 anos, aí eu pisquei e hoje tenho 28. O tempo é um trator com velocidade de Ferrari.
Fugi da minha realidade porque não queria servir no sapato da pessoa doente. Naturalizei o estereótipo que a sociedade conta sobre os doentes: que seus corpos são falhos, que suas trajetórias são sempre de superação, que são ora “coitadinhos” ora “guerreiros”, que tudo é custoso, que suas vidas são o oposto da vida ideal, que o sucesso e a felicidade são permanentemente sugados por um chupim chamado doença. Quando chegou a minha vez de reconhecer que, sim, eu era uma pessoa doente, e não simplesmente estava doente, não quis caber nesse estereótipo pequeno demais para a vida que queria para mim — pequeno demais para qualquer pessoa, na verdade, qualquer seja sua condição.
A Chimamanda chama esses estereótipos de “história única” (no famosérrimo TED Talk “O perigo de uma história única”, que, se você não viu, por favor, veja aqui):
A consequência da história única é esta: ela rouba a dignidade das pessoas. Ela dificulta o reconhecimento de igualdade entre seres humanos. Ela enfatiza nossas diferenças em vez de nossas similaridades. [...] Todas essas histórias fazem de mim o que sou. Mas insistir apenas nas histórias negativas é diminuir minha experiência e ignorar as muitas outras histórias que me formaram. A história única cria estereótipos, e o problema dos estereótipos não é a inverdade, mas a incompletude. Eles fazem com que uma história se torne a única história.
Essa fala é um alívio. Ela, ao mesmo tempo, me aponta o problema e a solução. O problema é que eu estava focando demais nas histórias negativas, na falta de perspectiva e dignidade da minha condição. A solução é fazer com que a história única da pessoa doente não contamine a forma como me vejo. Como? Contando as minhas histórias. Todas as minhas histórias. Porque, apesar de tudo, eu gosto de viver, e sei que essa parte dolorosa da minha vida, apesar de ser muito importante, não é a totalidade dela.
O meu casulo é confortável? Sim, ele é. Mas estou frustrada dentro dele, e não posso ficar aqui para sempre. O medo da hostilidade do mundo ainda me paralisa, mas decidi alinhar expectativas e realidades. E, para isso, entendi que precisaria (quem diria!) lidar com a realidade. Por mais que a vida me assuste, me assusta mais pensar em ter, nas palavras de Manuel Bandeira, uma “vida que poderia ter sido e não foi”. Demorou para que eu entendesse que aceitar doeria menos, porque só a partir da aceitação a gente pode fazer algo para mudar a realidade. Quer dizer, não posso mudar a raíz do meu problema, mas posso mudar o discurso, posso me dar mais esperanças e caminhos. Não preciso de direcionamentos precisos e respostas assertivas. Um horizonte visível é suficiente. Porque hoje, quando olho para baixo, não vejo meus pés, quando olho para trás, não vejo pegadas, quando olho para a frente, não vejo trilha alguma, mas um matagal lascado, e, pra piorar, não tenho nem um facão na mão e ninguém sabe me dizer como sair desse milharal de filme de terror. Eu mesma terei de descobrir o caminho, criando minhas próprias ferramentas, sozinha. Mas isso não me assusta, não mais. Porque cada uma das pessoas no mundo trilha um caminho único, e a melhor trilha para um não é necessariamente a melhor trilha para todos. Talvez um carro seja a saída mais rápida do matagal, mas e se o matagal for fechado demais? E se eu não souber dirigir (no caso, não sei mesmo)? A gente não é massa de bolo para caber em forma! Nós somos como o saudoso pokémon Ditto: moldável, camaleônico, adaptável, nunca com uma forma final, sempre em movimento.
Ditto, um pokémon claramente geminiano (como eu).
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Foi para criar minhas próprias ferramentas, para sair do matagal existencial, para descobrir a melhor trilha para mim, para conhecer todas as minhas formas, que decidi criar o Ensaio sobre a coceira. Embora eu tenha pensado em criar um canal no YouTube (uma péssima ideia, porque tenho dificuldade de falar sobre o mesmo assunto por muito tempo e sou uma roteirista medíocre) e um podcast (outra péssima ideia, porque eu nem ouço podcast!), um blog era a opção mais lógica para mim. Mais especificamente, um blog de ensaios, que são despretensiosamente sérios, ou seriamente despretensiosos (o que, acho eu, se parece muito comigo (ou como eu gostaria de ser)). Afinal, a quem eu estava querendo enganar? Eu escrevo melhor do que falo, penso melhor quando escrevo, e escrever é minha forma favorita de me comunicar.
Mas, com essa decisão, outro desafio se impunha: como narrar o que parece inenarrável? Como traduzir sensações, sentimentos e pensamentos aparentemente intraduzíveis? A verdade é que há anos sinto a urgência de falar sobre minhas vivências, graças, desgraças e opiniães sobre dermatite atópica e doenças crônicas. Há tanta coisa entalada nessa garganta, tanta coisa acumulada nesse par de mãos que escrevem, mas tanta coisa, que vocês nem imaginam o parto da escrita deste primeiro ensaio sobre a coceira. (Foi um parto humanizado, lento, sem anestesia.) Tudo parecia importante demais para não estar no texto inaugural.
Até que, numa aula de teoria de tradução, desceu dos céus uma resposta para esse dilema. Fui iluminada pela teoria da iluminação, do padroeiro dos tradutores, Agostinho (o santo, teólogo e filósofo, não o taxista ficcional):
A ideia surge em minha mente como uma rápida iluminação, ao passo que meu discurso é longo e atrasado e nada parecido com a ideia e, enquanto falo, o pensamento já se escondeu em seu local secreto. A ideia não deixou mais do que alguns vestígios marcados em minha memória e esses vestígios hesitam ao longo da lentidão de minhas palavras. Desses vestígios, construímos sons e falamos em latim, em grego, em hebraico ou em qualquer outra língua. Porém, os vestígios não são do latim nem do grego nem do hebraico nem de qualquer outra comunidade. Formam-se na mente, assim como uma expressão facial se forma no corpo.
(AGOSTINHO DE HIPONA apud PYM, A. Explorando as teorias da tradução. 1a edição: Perspectiva, 2017, p. 194-195.)
O que Agostinho quis dizer é que o ideal seria que pudéssemos ler as mentes uns dos outros, mas, já que não temos essa conveniente habilidade, a língua dá para o gasto. Só que ela é parcial! Por isso é possível traduzir a mesma coisa de diversas formas! Se há diversas maneiras de acessar a ideia prévia ao texto, todas as traduções têm seu valor, pois são apenas diferentes faces da mesma verdade.
Imersa na preocupação de traduzir a minha experiência e meus pensamentos da forma mais completa e fiel possível, paralisei. Tinha encasquetado que as partes difíceis deveriam ser capturadas enquanto latentes, temia que fosse esquecer delas como alguém teme esquecer a voz de uma pessoa querida que se foi. Mas eu estava extremamente caramuja sem concha. Não conseguia nem refletir na privacidade da minha cabeça, porque assimilar o meu presente parecia uma forma de evidenciar e agudizar a dor. Na teoria de Agostinho, é como se eu nem ao menos tivesse a luz, mas já quisesse ter a palavra. Ou seja: minha carroça estava na frente dos bois.
ELE: Santo Agostinho.
Mas agora me sinto finalmente forte para acolher e dividir essa parte tão grande de mim. Quando a gente põe nossos demoninhos para fora, aprende que demoninhos podem ser nossos amiguinhos. Pelo menos, é o que estou aprendendo.
Há muitas luzes na minha cabeça, mas nem todas elas atingiram a forma verbal ainda. À medida que as palavras forem surgindo, vou escrevendo. Não vou mais esperar ter as melhores reflexões do mundo, nem as palavras perfeitas, porque, como ensinou Agostinho, toda parcela de expressão verbal vinda da luz primal é válida. Se é impossível expressar a totalidade da luz do pensamento abstrato e não verbal, aqui neste blog, farei o possível. Quero despejar os meus pensamentos e percepções em palavras, de forma honesta e fresca, mas não definitiva. Elaborar a minha dermatite é elaborar quem eu posso ser. Com a urgência da minha coceira, preciso narrativizar as minhas experiências, assimilar a minha história e entender as minhas possibilidades para o futuro. E, pela primeira vez em muito tempo, estou ansiosa (de uma ansiedade do bem) para viver a realidade. Já que ninguém conseguiu falar por mim até agora (como conseguiria?), falo eu mesma. Esta é a minha história.
No fim das contas, acho que o mantra mais acertado para mim em “Aqui e agora” não seja mesmo “O melhor lugar do mundo é aqui e agora”. Há um outro trecho, mais discreto — acho que por isso não o percebi de primeira —, que cabe como uma luva feita sob medida para mim:
Sentir é questão de pele
Amor é tudo que move
Camp Rock (2008)
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ResponderExcluirPossuo dermatite grave, tenho 21 anos. Desde marco de 2020 minha vida se tornou um pesadelo, sempre tive porém conseguia controlar, desenvolvi sensibilidade alérgicas a mais de 80 alimentos, dormi e acordar ficou cada vez mais difícil, sinto que estou sempre em estado de alerta, literalmente em um filme plano sequência em um frenesi. Ter D.A é viver com a fé insustentável de que talvez o amanhã nao seja tao dolorido, a autoaceitação é um caminho doloroso mas torna dela nosso objetivo de vida.
ResponderExcluirMuito obrigado pelo os textos, sua escrita é incrivel. Não costumo ler muito esses blogs, mas de fato, MUITO OBRIGADO
oi, não te conheço mas cheguei no seu blog por acaso. desejo muito que você fique bem, na medida do possível, e que a sua vida se torne acessível e suportável. fiquei real emocionada com o seu relato. força pra você e pra todo mundo que tem o mesmo problema. sinto muito que não tenha cura, só tratamentos que nem sempre funcionam. seu texto é muito bom! boa sorte
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